Entre os dias 25 e 27 de novembro de 2025, o Campus Fiocruz Manguinhos, no Rio de Janeiro, transformou-se no principal ponto de encontro da comunidade neurocientífica brasileira, com a realização conjunta do XIII Simpósio de Neurociências da Universidade Federal Fluminense e do VIII Simpósio UFF/Fiocruz de Neurociências. Mais do que cumprir uma tradição que alterna anualmente a sede entre as duas instituições, o encontro destacou o seu papel estratégico na discussão de temas decisivos para a ciência contemporânea. Durante três dias, apresentaram-se pesquisas que atravessam neuroimunologia, neurodesenvolvimento, neuroinflamação, sistemas complexos, dor, imunoterapia, equidade de gênero e formação acadêmica.
Abertura destacada pela integração entre Fiocruz e UFF
A abertura reuniu duas das principais articuladoras do evento. Cecília Hedin-Pereira (Fiocruz e do INCT-NIM) destacou o caráter contínuo da parceria e lembrou que a organização de um congresso como este não se encerra com as atividades presenciais. Segundo ela, o simpósio representa um trabalho permanente que integra UFF, Fiocruz e diversas instituições do estado. “Esse congresso não é algo que começa e termina. Há oito anos mantemos um fluxo contínuo de trabalho e de troca, e isso é fundamental para a Fiocruz e para a neurociência do estado. A parceria entre UFF e Fiocruz se entrelaça, respira junto e cria um ambiente real de estímulo à produtividade científica”, afirmou.

Ao lado de Cecília, a coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Neurociências da UFF, Karin Calaza, lembrou a trajetória do simpósio desde os primeiros encontros em Neuroimunologia. Ela destacou o orgulho de ver o auditório repleto de jovens estudantes e ressaltou a importância do evento na formação de novas gerações. “Fazer este evento é um trabalho de um ano inteiro, e ver essa plateia tão jovem nos mostra por que ele precisa continuar. Temos muitos alunos e alunas da graduação, da pós-graduação, e a achamos que essa é uma oportunidade de troca de aprendizado muito importante e ampla”, declarou.
Conferência inaugural sobre polilaminina e inovação translacional

A conferência de abertura, apresentada por Tatiana Sampaio, da UFRJ, e presidida pelo por Wilson Savino (Fiocruz e coordenador do INCT-NIM) abordou o percurso que transformou a polilaminina em um composto de relevância terapêutica. Savino, ao introduzir a convidada, reforçou o espírito colaborativo que marca o simpósio e afirmou que “nada que construímos na ciência brasileira foi feito sozinho. Cada descoberta é um ponto dentro de uma rede colaborativa, e este simpósio é mais um elo dessa rede”.
Em uma apresentação envolvente e repleta de ciência e humanidade, Tatiana contou como um achado em laboratório, ainda na década de 1990, deu origem ao desenvolvimento da polilaminina, candidata a medicamento para regeneração da medula espinhal e considerada uma das descobertas mais promissoras da neurociência translacional brasileira. Ela explicou que o caminho começou na curiosidade científica: “Eu estudava a laminina simplesmente porque era uma proteína fascinante. Mas, quando percebemos que ela formava estruturas complexas e ordenadas em pH ácido, vimos que isso poderia ser algo maior. Foi um momento de ‘o que vamos fazer com isso?’”.
Ao caracterizar o processo de polimerização, Tatiana e sua equipe descobriram que essa forma organizada reproduzia com precisão a estrutura natural da laminina no organismo. A partir daí, surgiram perguntas ambiciosas: seria possível estimular crescimento axonal? Poderia haver impacto em lesões na medula? Ao longo de mais de duas décadas, a pesquisadora acumulou resultados em cultura de neurônios, modelos experimentais em roedores, estudos em animais com lesões crônicas e, mais tarde, um pequeno estudo clínico com pacientes humanos. Segundo ela, os primeiros casos foram marcantes: “Dos oito pacientes tratados, seis tiveram recuperação motora significativa. Isso mudou tudo”.

A trajetória ganhou um novo capítulo quando a indústria nacional se uniu ao laboratório para viabilizar o desenvolvimento do produto. “Eu ouvi do presidente da empresa: ‘O governo brasileiro sempre me ajudou. Acho que chegou a hora de devolver’. Foi assim que a colaboração começou”, contou Tatiana, ao relatar a parceria com o laboratório Cristália. Hoje, a equipe aguarda autorização da Anvisa para retomar estudos clínicos dentro das normas atuais de produção. “A ciência brasileira pode chegar longe. A prova está aqui”, afirmou, emocionada.
Direitos trabalhistas na pós-graduação entram em pauta
No decorrer do dia, a mesa-redonda “Direitos trabalhistas dos discentes de pós-graduação” trouxe para o centro do simpósio um debate fundamental sobre condições de trabalho, financiamento e futuro da carreira científica. Presidida por Wilson Savino, a sessão reuniu Christopher Rocha, diretor de Direitos Humanos da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), e Thiago Signorini Gonçalves, da UFRJ, secretário regional da SBPC no Rio de Janeiro.
Christopher apresentou a perspectiva dos próprios pós-graduandos e ressaltou a condição híbrida de quem pesquisa no Brasil, ao mesmo tempo estudante e trabalhador. Ele destacou a necessidade de reconhecimento formal da pós-graduação como trabalho intelectual e defendeu a criação de um marco legal do trabalho acadêmico que assegure direitos previdenciários e proteção social. “Nós produzimos ciência, entregamos resultados e sustentamos boa parte da pesquisa do país. Esse ofício precisa ser reconhecido como trabalho, com direitos garantidos, para que ninguém precise morrer em sala de aula ou no laboratório para ter acesso à aposentadoria”, afirmou. Ao citar o Dossiê Florestan Fernandes, elaborado pela ANPG, Christopher lembrou que cerca de 80 por cento dos pós-graduandos vivem em condições de vulnerabilidade socioeconômica e que boa parte da evasão na pós-graduação está ligada ao adoecimento psíquico, à precarização das bolsas e a práticas abusivas em alguns programas.


Thiago Signorini ampliou o debate ao contextualizar o cenário de financiamento da ciência no país e o impacto direto das políticas orçamentárias sobre a vida de mestrandos, doutorandos e pós-doutorandos. Com a experiência de professor e ex-coordenador de programa de pós-graduação, ele lembrou cortes expressivos em bolsas e recursos de custeio, além da dificuldade de recuperar níveis anteriores de investimento. Para Thiago, a raiz do problema está na forma como o Brasil encara o financiamento científico. “A ciência no Brasil ainda é tratada como política de governo, não como política de Estado. Enquanto o orçamento oscilar a cada conjuntura e as bolsas forem vistas como gasto opcional, vamos continuar perdendo cérebros, afastando jovens talentos e renunciando a soberania científica”, afirmou.
Jovens pesquisadores e as fronteiras da neuroimunologia

A tarde do primeiro dia foi dedicada ao mini-simpósio “Trajetórias em Construção. A Ciência Produzida por Pós-docs”. A apresentação de Poliana Capucho Sandre (IOC Fiocruz e INCT-NIM) foi um dos destaques da sessão. Poliana apresentou dados que ampliam o entendimento sobre o papel do sistema imune no desenvolvimento cerebral. Ela demonstrou que linfócitos T CD4 participam diretamente da maturação do sistema nervoso, influenciando poda sináptica, organização de circuitos, funções sensório-motoras e formação de memória. Em um momento de emoção, afirmou: “Toda a base de neuro que eu tenho nasceu no PPGNeuro-UFF. Foi essa formação que me permitiu desenvolver o meu pós-doc na Fiocruz com maturidade. Entender como o sistema imune influencia o cérebro é perceber que dois mundos, antes separados, se completam”.
Ainda na programação do mini-simpósio também foram discutidos temas como o “Metabolismo lipídico na infecção pelo vírus Zika: mecanismos e implicações na patogênese”, apresentado pela Dra. Suelen S. G. Dias (IOC/Fiocruz); “Early life stress accelerates myelin development: a role of corticosterone and endocannabinoids” pelo Dr. Agustin Riquelme (UFRJ Fiocruz); e “Sepse gestacional é um fator de risco para alterações no desenvolvimento do sistema nervoso central”, pelo Dr. Marcelo Gomes Granja (IOC Fiocruz).
Debates sobre dor, neuroinflamação e equidade na ciência
O segundo dia iniciou-se com a conferência de Francesco De Logu, da Universidade de Florença, presidida por Roberta Olmo Pinheiro (Fiocruz e INCT-NIM). Sua apresentação explorou o papel da proteína Piezo1 em células de Schwann e sua participação na dor associada a invasões perineurais por tumores.
Em seguida, o mini-simpósio “Mecanismos Moleculares da Dor. Da Neuroinflamação aos Distúrbios do Sono”, presidido por Daniel de Araújo (UFF), trouxe perspectivas importantes sobre vias inflamatórias, oxidativas e comportamentais relacionadas à dor crônica, que reuniu contribuições essenciais com apresentações de Romina Nassini (Universidade de Florença) sobre “Schwann Cell C5aR1 co-opts Inflammasome NLRP1 to Sustain Pain in a Mouse Model of Endometriosis”; Gabriela Trevisan (UFSM), com “Advanced oxidation protein products activated TRPA1 in a neuropathic multiple sclerosis model”; e Daniel de Araújo (UFF), que apresentou “Sleep deprivation as a trigger for pain: exploring a potential inflammatory mechanism”.
À tarde, a mesa conduzida por Valéria de Matos Borges (Fiocruz Bahia) reuniu pesquisadoras que discutiram gênero, tecnologia e inclusão na ciência. Luciane Patrício Barbosa Martins (UFF) apresentou “Tecnologias sociais: ciência e tecnologia implicadas com a sociedade”; Cristina Araripe Ferreira (Fiocruz) trouxe a experiência do projeto “STEM na Saúde: promoção da equidade de gênero na ciência, tecnologia e inovação”; e Adriana Melibeu (PPGNeuro-UFF) compartilhou os resultados e desafios do “Projeto Meninas nas Ciências”. Juntas, apontaram caminhos concretos para ampliar a participação feminina na produção científica brasileira.

Os avanços em imunoterapia, efeitos do álcool e sistemas complexos
A manhã do dia 27 avançou com a conferência de Vinícius Cotta (IOC/ Fiocruz e INCT-NIM), que apresentou “Imunoterapia anti-VLA-4: perfil morfológico e funcional das células T e predição de resposta ao tratamento em pacientes com esclerose múltipla”, uma das linhas de pesquisa que destaca a criação de uma plataforma capaz de prever, antes mesmo do início do tratamento, quais pacientes com esclerose múltipla responderão ao anticorpo monoclonal anti-VLA4. A partir da análise de centenas de parâmetros morfológicos e funcionais de células T, obtidos por microscopia automatizada de alto conteúdo e combinados com algoritmos de machine learning, o grupo demonstrou que é possível distinguir respondedores e não respondedores com alta precisão.


Ainda pela manhã, o mini-simpósio “Efeitos do Álcool no Sistema Nervoso” trouxe a apresentação central de Cláudio Serfaty (UFF e INCT-NIM). Serfaty mostrou que doses extremamente baixas de etanol no último trimestre da gestação humana, podem causar déficits significativos em períodos críticos do neurodesenvolvimento, prejudicando segregação sináptica, plasticidade, expressão de BDNF e CREB, além de modificar a reatividade glial.
Sistemas complexos e modelos matemáticos ampliam perspectivas da neurociência
À tarde, o mini simpósio “Sistemas Complexos” trouxe diálogos entre física, matemática e neurociência ao discutir fenômenos coletivos neuronais, hipóteses de estado críticos cerebrais e dinâmicas estatísticas. As falas de Dimitri Abramov, Mauro Copelli e Claudia Vargas expandiram a visão dos participantes sobre as bases teóricas que sustentam o funcionamento de redes neurais.
Encerramento emocionante celebra a trajetória de Wilson Savino
O encerramento científico foi conduzido por Wilson Savino, homenageado da edição, que apresentou “Ciência, Cultura, Arte e Cidadania. Seis décadas de memórias interconectadas”, presidida por Cecília Hedin-Pereira e Cláudio Serfaty. Em uma fala marcada por emoção, Savino percorreu sua trajetória pessoal e científica, desde memórias da infância sob a ditadura militar até a construção institucional da imunologia no Brasil e o nascimento do INCT-NIM. Ao refletir sobre a força da comunidade científica, afirmou que “a história da ciência brasileira é feita de resistência, criatividade e colaboração. No seio da solidariedade reside a amizade, que é uma forma de amor. Quando trabalhamos juntos, a lógica do ódio desaparece”. Após a conferência, o público assistiu ao filme “Savino – um retrato”, produzido especialmente para celebrar sua trajetória.



